quarta-feira, 5 de março de 2014

Meus 13 dias com Chê Guevara


Depois, num encontro restrito do Che com antigos amigos e seis jornalistas, fiz uma pergunta que destoava do tom daqueles tempos em que a dialética e filosofia marcavam a revolução. Houve risos de sarcasmo e entreolhares de surpresa. Só mesmo um "macaquito brasileño" indagaria algo tão simples e sem sentido, que raiava a tolice, em meio àqueles argentinos de fama e prestígio, que discorriam com total naturalidade sobre o empirocriticismo ou a identidade dos contrários, para exibir o máximo de sabedoria ao conterrâneo famoso.
          Só ele, o anfitrião e entrevistado, não riu nem sorriu e, em voz alta, repetiu a si mesmo a pergunta:
          - Qué es lo más importante en un combatiente?
        No inverno úmido, a asma reaparecia e, às vezes, lhe travava a respiração, mas Ernesto Che Guevara não titubeou na resposta:
          - Las extremidades! A extremidade inferior, os pés! - exclamou, e a gargalhada de zombaria foi geral.
          Outra vez. só ele não riu. E, sem ouvir o riso galhofeiro dos que se riam unicamente por pensar que ele também iria rir, tomou um tom ainda mais sério e começou a falar da importância das extremidades. Sim, porque os cuidados essenciais são três, e nessa santíssima trindade está o poder de ataque e defesa do combatente, sua condição de céu ou inferno. Primeiro a cabeça, extremidade superior, que conduz tudo. Perder a cabeça é perder-se, seja onde for. Logo, as extremidades laterais, os braços. Ágeis, envolventes e voluptuosos como no amor, ou lentos e inertes como no sono, os braços - e neles as mãos - defendem um ritmo, o ritmo do corpo que controla a carabina, movendo-se como uma bailarina na dança ou uma serpente na árvore.
          Por fim, as extremidades inferiores, os pés, sustentação do corpo e dos braços. Base da base e de tudo que é básico, os pés definem e guiam o passo da coluna guerrilheira. A velocidade de quem avança, quem marca é o pé mais cansado ou menos cansado. A cadência, é ele que dá, até mesmo na correria do recuo, quando nos atacam e retrocedemos. Se o pé aguenta, tudo se aguenta.
          O Che fitou o alto da parede da sala do hotel e disse:
         - Nossa experiência guerrilheira em Cuba mostra algo simples, rudimentar. Pode-se descuidar de todo o corpo, menos dos pés. Um combatente pode ficar semanas ou meses sem um banho, mas deve lavar os pés a cada dia. A roupa pouco importa, mas o calçado é fundamental! - completou Guevara, pernas cruzadas, tocando com a mão a própria bota, do cano à sola, numa irrefreável carícia.

(Meus 13 dias com Chê Guevara, de Flávio Tavares, páginas 70 e 71)

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