terça-feira, 31 de maio de 2011

'Ser quadrúpede!Andar de quatro pés,é mais do que ser Cristo e ser Moisés'

“A viagem não começa quando se percorrem as distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores.”
Mia Couto
'...movimento de pessoas entre locais relativamente distantes, com qualquer propósito e duração,  utilizando ou não qualquer meio de transporte.O percurso pode ser feito por mar, terra ou ar. Também se entende como viagem todo um período de deslocações com estadias mais ou menos longas em alguns destinos.'
VIAGEM DE UM VENCIDO, Augusto dos Anjos

Noite. Cruzes na estrada. Aves com frio...
E enquanto eu tropeçava sobre os paus,
A efígie apocalíptica do Caos
Dançava no meu cérebro sombrio!

O Céu estava horrivelmente preto
E as árvores magríssimas lembravam
Pontos de admiração que se admiravam
De ver passar ali meu esqueleto!

Sozinho, uivando hoffmânnicos dizeres,
Aprazia-me assim, na escuridão,
Mergulhar minha exótica visão
Na intimidade noumenal dos seres.

Eu procurava, com uma vela acesa,
O feto original, de onde decorrem
Todas essas moléculas que morrem
Nas transubstanciações da Natureza.

Mas o que meus sentidos apreendiam
Dentro da treva lúgubre, era só
O ocaso sistemático de pó,
Em que as formas humanas se sumiam!

Reboava, num ruidoso burburinho
Bruto, análogo ao peã de márcios brados,
A rebeldia dos meus pés danados
Nas pedras resignadas do caminho.

Sentia estar pisando com a planta ávida
Um povo de radículas e embriões
Prestes a rebentar, como vulcões,
Do ventre equatorial da terra grávida!

Dentro de mim, como num chão profundo,
Choravam, com soluços quase humanos,
Convulsionando Céus, almas e oceanos
As formas microscópicas do mundo!

Era a larva agarrada a absconsas landes,
Era o abjeto vibrião rudimentar
Na impotência angustiosa de falar,
No desespero de não serem grandes!

Vinha-me à boca, assim, na ânsia dos parias,
Como o protesto de uma raça invicta,
O brado emocionante de vindicta
Das sensibilidades solitárias!

A longanimidade e o vilipêndio,
A abstinência e a luxúria, o bem e o mal
Ardiam no meu orço cerebral,
Numa crepitação própria de incêndio!

Em contraposição à paz funérea,
Soia profundamente no meu crânio
Esse funcionamento simultâneo
De todos os conflitos da matéria!

Eu, perdido no Cosmos, me tornara
A assembléia belígera malsã,
Onde Ormuzd guerreava com Arimã,
Na discórdia perpétua do sansara!

Má me fazia medo aquela viagem
A carregar pelas ladeiras tétricas,
Na óssea armação das vértebras simétricas
A angústia da biológica engrenagem!

No Céu, de onde se vê o Homem de rastros,
Brilhava, vingadora, a esclarecer
As manchas subjetivas do meu ser
A espionagem fatídica dos astros!

Sentinelas de espíritos e estradas,
Noite alta, com a sidérica lanterna,
Eles entravam todos na caverna
Das consciências humanas mais fechadas!
Ao castigo daquela rutilância,
Maior que o olhar que perseguiu Caim,
Cumpria-se afinal dentro de mim
O próprio sofrimento da Substância!

Como quem traz ao dorso muitas cargas
Eu sofria, ao colher simples gardênia,
A multiplicidade heterogênea
De sensações diversamente amargas.

Mas das árvores, frias como lousas,
Fluía, horrenda e monótona, uma voz
Tão grande, tão profunda, tão feroz
Que parecia vir da alma das cousas;

"Se todos os fenômenos complexos,
Desde a consciência à antítese dos sexos
Vêm de um dínamo fluídico de gás,
Se hoje, obscuro, amanhã píncaros galgas,
A humildade botânica das algas
De que grandeza não será capaz?!

Quem sabe, enquanto Deus, Jeová ou Siva
Oculta à tua força cognitiva
Fenomenalidades que hão de vir,
Se a contração que hoje produz o choro
Não há de ser no século vindouro
Um simples movimento para rir?!

Que espécies outras, do Equador aos pólos
Na prisão milenária dos subsolos,
Rasgando avidamente o húmus malsão,
Não trabalham, com febre mais bravia,
Para erguer, na ânsia cósmica, a Energia
À última etapa da objetivação?!

É inútil, pois, que, a espiar enigmas, entres
Na química genésica dos ventre,
Porque em todas as cousas, afinal,
Crânio, ovário, montanha, árvore, iceberg,
Tragicamente, diante do Homem, se ergue
A esfinge do Mistério Universal!

A própria força em que teu Ser se expande,
Para esconder-se nessa esfinge grande,
Deu-te
filho dos terráqueos limos,
Nós, arvoredos desterrados, rimos
Das vãs diatribes com que atrudes o ar...
Rimos, isto é, choramos, porque, em suma,
Rir da desgraça que de ti ressuma
É quase a mesma coisa que chorar!"
Às vibrações daquele horrível carme
Meu dispêndio nervoso era tamanho
Que eu sentia no corpo um vácuo estranho
Como uma boca sôfrega a esvaziar-me!

Na avançada epiléptica dos medos
Cria ouvir, a escalar Céus e apogeus,
A voz cavernosíssima de Deus
Reproduzida pelos arvoredos!

Agora, astro decrépito, em destroços,
Eu, desgraçadamente magro, a erguer-me,
Tinha necessidade de esconder-me
Longe da espécie humana, com os meus ossos!

Restava apenas na minha alma bruta
Onde frutificara outrora o
Amor
Uma volicional fome interior
De renúncia budística absoluta!

Porque, naquela noite de ânsia e inferno,
Eu for, alheio ao mundanário ruído,
A maior expressão do homem vencido
Diante da sombra do Mistério Eterno!

segunda-feira, 30 de maio de 2011

MISTÉRIOS DE UM FÓSFORO

Pego de um fósforo. Olho-o. Olho-o ainda. Risco-o
Depois. E o que depois fica e depois
Resta é um ou, por outra, é mais de um, são dois
Túmulos dentro de um carvão promíscuo.

Dois são, porque um, certo, é do sonho assíduo
Que a individual psique humana tece e
O outro é o do sonho altruístico da espécie
Que é o substractum dos sonhos do indivíduo!

E exclamo, ébrio, a esvaziar báquicos odres:
- "Cinza, síntese má da podridão,
"Miniatura alegórica do chão,
"Onde os ventres maternos ficam podres;

"Na tua clandestina e erma alma vasta,
"Onde nenhuma lâmpada se acende,
"Meu raciocínio sôfrego surpreende
"Todas as formas da matéria gasta!"

Raciocinar! Aziaga contingência!
Ser quadrúpede! Andar de quatro pés
É mais do que ser Cristo e ser Moisés
Porque é ser animal sem ter consciência!

Bêbedo, os beiços na ânfora ínfima, harto,
Mergulho, e na ínfima ânfora, harto, sinto
O amargor específico do absinto
E o cheiro animalíssimo do parto!

E afogo mentalmente os olhos fundos
Na amorfia da cítula inicial,
De onde, por epigênese geral,
Todos os organismos são oriundos.

Presto, irrupto, através ovóide e hialino
Vidro, aparece, amorfo e lúrido, ante
Minha massa encefálica minguante
Todo o gênero humano intra-uterino!

É o caos da avita víscera avarenta
- Mucosa nojentíssima de pus,
A nutrir diariamente os fetos nus
Pelas vilosidades da placenta! -

Certo, o arquitetural e íntegro aspecto
Do mundo o mesmo inda é, que, ora, o que nele
Morre, sou eu, sois vós, é todo aquele
Que vem de um ventre inchado, ínfimo e infecto!

É a flor dos genealógicos abismos
- Zooplasma pequeníssimo e plebeu,
De onde o desprotegido homem nasceu
Para a fatalidade dos tropismos. -

Depois, é o céu abscôndito do Nada,
É este ato extraordinário de morrer
Que há de, na última hebdômada, atender
Ao pedido da célula cansada!

Um dia restará, na terra instável,
De minha antropocêntrica matéria
Numa côncava xícara funérea
Uma colher de cinza miserável!

Abro na treva os olhos quase cegos.
Que mão sinistra e desgraçada encheu
Os olhos tristes que meu Pai me deu
De alfinetes, de agulhas e de pregos?!

Pesam sobre o meu corpo oitenta arráteis!
Dentro um dínamo déspota, sozinho,
Sob a morfologia de um moinho,
Move todos os meus nervos vibráteis.

Então, do meu espírito, em segredo,
Se escapa, dentre as tênebras, muito alto,
Na síntese acrobática de um salto,
O espectro angulosíssimo do Medo!

Em cismas filosóficas me perco
E vejo, como nunca outro homem viu,
Na anfigonia que me produziu
Nonilhões de moléculas de esterco.

Vida, mônada vil, cósmico zero,
Migalha de albumina semifluida,
Que fez a boca mística do druida
E a língua revoltada de Lutero;

Teus gineceus prolíficos envolvem
Cinza fetal!... Basta um fósforo só
Para mostrar a incógnita de pó,
Em que todos os seres se resolvem!

Ah! Maldito o conúbio incestuoso
Dessas afinidades eletivas,
De onde quimicamente tu derivas,
Na aclamação simbiótica do gozo!

O enterro de minha última neurona
Desfila... E eis-me outro fósforo a riscar.
E esse acidente químico vulgar
Extraordinariamente me impressiona!

Mas minha crise artrítica não tarda.
Adeus! Que eu vejo enfim, com a alma vencida,
Na abjeção embriológica da vida
O futuro de cinza que me aguarda!
                   (AUGUSTO DOS ANJOS)

FOTO:Charles Trigueiro

MANHÃ (Mia Couto)

Estou
e num breve instante
sinto tudo
sinto-me tudo
Deito-me no meu corpo
e despeço-me de mim
para me encontrar
no próximo olhar
Ausento-me da morte
não quero nada
eu sou tudo
respiro-me até à exaustão
Nada me alimenta
porque sou feito de todas as coisas
e adormeço onde tombam a luz e a poeira
A vida (ensinaram-me assim)
deve ser bebida
quando os lábios estiverem já mortos
Educadamente mortos
Mia Couto
In: Despedida

terça-feira, 24 de maio de 2011

morte, o que seria?

“A morte, afinal, é uma corda que nos amarra as veias. O nó está lá desde que nascemos. O tempo vai esticando as pontas da corda, nos estancando pouco a pouco.”
Mia Couto, em Terra Sonâmbula

FOTO: CHARLES TRIGUEIRO

segunda-feira, 23 de maio de 2011

tucanos X tucanos(gênero:Ramphastos)

Os tucanos políticos são realmente diferentes dos tucanos pássaros,  grande semeadores da vida. Os primeiros, não deveriam sequer utilizar a denominação dessa espécie pois seu produto é infértil e secam tudo o que tocam, ao invés de semearem, destroem até as pequenas mudas, exemplo disso é o fechamento do Teatro da Dança .

sexta-feira, 20 de maio de 2011

quinta-feira, 19 de maio de 2011

...É a Morte - esta carnívora assanhada

...É a Morte - esta carnívora assanhada -
Serpente má de língua envenenada
Que tudo que acha no caminho, come...
- Faminta e atra mulher que, a 1 de Janeiro,
Sai para assassinar o mundo inteiro,
E o mundo inteiro não lhe mata a fome!
Augusto dos Anjos


Ismael Nery

quarta-feira, 18 de maio de 2011

terça-feira, 17 de maio de 2011

Teatro de bonecos




VOZES da MORTE poema de augusto dos anjos

Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,
Tamarindo de minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nervura,
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!
Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!
E a podridão, meu velho! E essa futura
Ultrafatalidade de ossatura,
A que nos acharemos reduzidos!
Não morrerão, porém, tuas sementes!
E assim, para o Futuro, em diferentes
Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos,
Na multiplicidade dos teus ramos,
Pelo muito que em vida nos amamos,
Depois da morte, inda teremos filhos

quarta-feira, 11 de maio de 2011

É doce morrer no mar (Dorival Caymmi)

É doce morrer no mar,
Nas ondas verdes do mar
 A noite que ele não veio foi,
Foi de tristeza pra mim
Saveiro voltou sozinho
Triste noite foi pra mim
É doce...
Saveiro partiu de noite, foi
Madrugada não voltou
O marinheiro bonito
Sereia do mar levou.
É doce...
Nas ondas verdes do mar, meu bem
Ele se foi afogar
Fez sua cama de noivo
No colo de Iemanjá

FOTOS: Jerry Uelsmann
  Piano e arranjo: Benjamin Taubkin
Sax barítono: Teco Cardoso
Baixo acústico: Rodolfo Stroeter
Percussão: Caíto Marcondes


segunda-feira, 9 de maio de 2011

Expandindo novos olhares...

 'Produto Perecível Laico' Ninho Sansacroma 30/04 e 01/05

SAIA DO CENTRO por Inês Correa
 Piso de fundo de garrafa na entrada do prédio

 Fachada externa da Fábrica de Criatividade

Porta de entrada dos banheiros


É muito longe? Depende do ponto de vista. Se você mora na Lapa, na Vila Olympia, o Capão Redondo é longe. Se mora no Capão Redondo, a Lapa, a Vila é que são. São Paulo é uma cidade grande, uma metrópole. As distâncias aumentam em função da falta de um transporte coletivo melhor. De carro, congestionamentos são previstos. De ônibus e metrô tem gente, muita gente.

Havia tempo que pretendia ir ao Capão Redondo conhecer a Fábrica de Criatividade. Tanto tempo, que ela mudou de nome, hoje é o Ninho Sansacroma e direção geral e artística, atualmente nas mãos de Gal Martins, responsável também pela Cia. Sansacroma. Conheci a Gal no Oxigênio e trouxe algumas palavras dela aqui no Corpoemimagem, em 2009. Sempre que a reencontrava dizia que iria no Capão. Surgiu a oportunidade de fotografar o novo trabalho, Produto Perecível Laico, do Sandro Borelli, da Cia. Borelli, que vai estrear no Semanas da Dança, no Centro Cultural São Paulo e a "prévia" aconteceu lá no ninho, no Capão. 

Ao chegar a primeira surpresa, o prédio. Comentei com a Gal e ela disse que não era a única a me surpreender. Um prédio bem estruturado e funcionando, cheio de meninos e meninas estudando. Se destaca de tudo o que há em volta (veja a foto acima). Ao entrar é preciso atravessar uma "passarela" feita de fundos de garrafa. Olhei para baixo e não notei de cara não. Quem me fez olhar de novo foi a Cristiane Klein, produtora cultural. Não resisti e fiz a foto também. A porta de entrada parece aço com um monte de bolinha-de-gude brilhando. As portas do banheiro podem ser vistas na foto. Outros detalhes, muitos outros, cada um, cada qual, só indo até lá.  

Aliás resolvi escrever este post por alguns motivos. O primeiro foi para mostrar outro ponto de vista da cidade, fora do centro dela, sair do centro. Estou considerando centro não o centro velho mas os bairros considerados centrais. Não fui até lá na periferia fotografar os "gatos" nem a violência. Não tenho nada contra isso. Fazer tais fotos é uma forma de denúncia. Aqui as fotos são para anunciar talvez, não denunciar. Anunciar outras imagens que existem dentro da cidade de São Paulo. Resolvi trazer uma perspectiva que pode ser apresentada. Uma periferia com um perfil existindo, que está acontecendo lá. agora.  Uma periferia que se organiza. Violência, para ver, não é preciso ir até a periferia não. Basta sair de casa. Pode acontecer em qualquer esquina. Um pouco mais aqui, um pouco menos ali. É uma questão que precisa ser resolvida e pode, com educação, com respeito e melhor distribuição de renda. Mais, muito mais, é claro. São caminhos longos e cheios de congestionamentos...Existe um bom motivo para ir ao Capão Redondo conhecer o Ninho Sansacroma. O Circuito Vozes do Corpo.A programação completa está aqui :
http://ciasansacroma.wordpress.com/2011/04/15/programacao-circuito-vozes-do-corpo/.
Começa quinta-feira, dia 5. 
Saia de casa. Vá conhecer sua cidade e se surpreender com ela.
fonte:http://www.corpoemimagem.blogspot.com/

segunda-feira, 2 de maio de 2011

TENSÃO E TEATRO PÓS-DRAMÁTICO

Trecho extraído do capítulo Tensão e Artes Cênicas do livro Taanteatro – teatro coreográfico de tensões
O teórico teatral Hans-Thies Lehmann lançou, com seu livro O teatro pós-dramático, uma tentativa de descrever e conceituar o desenvolvimento do teatro a partir de 1970. No lugar de pós-moderno, termo que procura abarcar a complexidade das manifestações culturais de cerca de três décadas (1970 a 1990), Lehmann propõe o conceito pós-dramático, de abrangência mais restrita, voltada exclusivamente para as artes cênicas. O autor admite a proximidade do teatro pós-dramático com o teatro energético, esboçado pelo filósofo francês Jean-François Lyotard que, por sua vez, situa-se nos arredores do teatro da crueldade de Artaud. O teatro energético é concebido como teatro de “forças, intensidades, afetos, presenças”. Teatro além do drama, do significado e da representação – o que, de acordo com Lehmann, não impede a presença da representação, mas do domínio de sua lógica. O teatro pós-dramático é caracterizado pelo “desaparecimento do princípio de narração, de figuração e de ordem da fábula” e pela “impossibilidade de fornecer sentido e síntese”, apontando apenas para perspectivas parciais. Seus elementos formais recorrentes são: fragmentação, deformação, subversão, transgressão, descontinuidade, não-textualidade, plurimedialidade e a anulação de fronteiras entre linguagens. O texto teatral não é mais a referência central e determinante da encenação, no lugar do discurso aparecem a meditação, o ritmo, as sonoridades, o espaço. É um teatro do gesto e do movimento. Lehmann resume essas tendências como a despedida das tradições da forma dramática, despedida que, no entanto, não exclui as estéticas mais antigas: “o teatro pós-dramático é essencialmente, mas não exclusivamente, ligado ao teatro experimental, disposto ao risco artístico”. É work in progress, adepto da desconstrução ou dissolução de narrativas, da mistura e simbiose de linguagens ou códigos de encenação. No teatro pós-dramático o absolutismo do corpo, que burla o sentido através da sensualidade, vive um “deslocamento da semântica para a sintaxe”. A realidade dessemantizada do corpo, isto é, o corpo auto-referencial e sua observação se tornam objeto estético-teatral. Apesar de todos os esforços para domesticar o potencial expressivo do corpo numa lógica, gramática, retórica, diz Lehmann, o corpo se tornou o centro do teatro, o signo central que “nega o serviço do significado” e o ponto irredutível da cena onde se realiza o fading de qualquer significar em favor da presença, da fascinação e da irradiação de “uma corporalidade auto-suficiente exposta em suas intensidades e potenciais gestuais – em sua presença aurática e em suas tensões internas e externamente transmitidas”. Some, junto com a representação, a projeção do corpo ideal; surge, com absoluto poder de incorporação de todos os outros discursos, o corpo intenso. O corpo, ao mostrar nada além de si mesmo, ao abandonar a sua significação voltando-se para o gesto livre de sentido, [...] torna-se tema único, [...] com uma significação que se refere à existência social inteira. Teatro pós-dramático é um teatro de potencialidades do corpo, não através de sua capacidade de significar, mas através de sua presença, da autodramatização da físis e do processo corporal que acontece entre corpos. Quando textos e ações cênicas são percebidos de acordo com o modelo da ação tensiva do drama clássico, as condições próprias da percepção teatral recuam: a presença do acontecimento, a semioticidade própria do corpo, os gestos e movimentos dos performers, as estruturas de composição formais da língua enquanto paisagem sonora, as qualidades inesgotáveis do visual além da representação, o desenrolar musical-rítmico com seu tempo próprio etc. – justamente os momentos que constituem a forma do teatro contemporâneo. No teatro pós-dramático, a tensão dramática clássica é substituída pela realidade da tensão corporal.

foto: vitor vieira
produto perecível laico
cia borelli abr2011
post.maíra barbosa