terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Há dois mil anos te mandei meu grito...

“É o negro ferido pelo desprezo do branco, e hostilizado, esmagado pelo orgulho do branco, impelido pelo branco a uma vida de aflição e miséria, e, no entanto, tomado de insofreável paixão pelo branco, pela mulher branca, sobretudo, que ergue os primeiros dolorosos clamores da poesia de Cruz, e procede às misteriosas transmutações que lhe transformam o mundo numa fulguração imensa, e inatingível, de gloriosas brancuras.”  Tasso da Silveira (1967).
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“Os escravos, cuja condição degradante trazia ele estampada na pele, servem-lhe de tema constante; daí para assumir atitudes abolicionistas e libertárias pouco demorou. Nesse tempo, os seus poemas, quando não encimados por palavras anódinas como “soneto” ou “poesia”, exprimem nos seus títulos o ardor revolucionário que inflama o poeta: “Avante”, “Entre Luz e Sombra”, “Sete de Setembro”, Grito de Guerra”, “Escravocratas”, “Da Senzala...”, “A Revolta”. Todos pertencem ao momento em que a indignação do poeta oscila entre ser literária e ser autêntico fruto duma experiência vivida na própria carne.” Massaud Moisés (1917).
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O autor ainda faz referência à presença de termos litúrgicos e a obsessão pelo branco, fator comum a tantas de suas metáforas. “À explicação um tanto simplista dos que viram nessa constante apena o reverso da cor do poeta, interprete mais profundo, o sociólogo francês Roger Bastide, preferiu outra dinâmica, pela qual todas as barreiras existências da vida de Cruz e Sousa – não só a cor- o levaram a um esforço de superação e de cristalização, fazendo-o percorrer um caminho inverso ao de Mallarmé, poeta do anulamento e do vazio.” Alfredo Bosi (1994).
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Em vão faz ressoar o embalde daquelas vozes que clamam há séculos inu-
tilmente para um deus absconditus:
“Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...
Em Dor negra a maldição é inerente à natureza da África, de sorte que a perversidade do cativeiro teria vindo somar-se a um infortúnio radical cuja origem se perde na noite dos tempos:
“Três vezes sepultada, enterrada três vezes: na espécie, na barbaria e no deserto, devorada pelo incêndio solar como por ardente lepra sidérea, és a alma negra dos supremos gemidos, o nirvana negro, o rio grosso e torvo de todos os desesperados suspiros, o fantasma gigantesco e noturno da Desolação”.
Ao infortúnio da terra veio acrescentar-se “o duro coturno egoístico das Civilizações, em nome, no nome falso e mascarado de uma ridícula e rôta liberdade” – dando o poeta a entender que a liberdade tardia dos povos africanos se fez mediante o reforço do poder do branco.
Como em Castro Alves, o coração da mensagem é trágico, quer se pense em termos da natureza da África, comburida e estéril, quer em termos da sua história sobre a qual paira a maldição de Cam. Assim, em vários textos das Evocações, a figura do poeta maldito deslocou-se da tensão artista versus burguês, patente em Baudelaire e em Verlaine (no Verlaine revelador de Rimbaud) para a tensão África versus Civilização ou, amplamente, África versus história universal.
É conhecida a tese de Roger Bastide formulada no seu estudo de literatura comparada “Cruz e Sousa e Baudelaire”. O poeta “metamorfoseou seu protesto racial em revolta estética, seu isolamento étnico em isolamento do poeta, a barreira de cor na barreira dos filisteus contra os artistas puros.” (Bosi; Poesia versus racismo)

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