terça-feira, 29 de janeiro de 2013

As radiações invisíveis e o poder da comunhão direta


[...] É uma espécie de lei: os clichês ocupam os espaços vazios, da mesma forma como as ervas daninhas ocupam os terrenos. Um gesto que for feito apenas por fazê-lo é um ato de força perpetrado contra nossos sentimentos interiores e sua manifestação natural.

Os hábitos mecânicos de um corpo exercitado, e de seus músculos, são muito fortes e teimosos. São como um escravos disposto porém estúpido, que muitas vezes é mais perigoso que um inimigo. Adquirimos os métodos exteriores e os artificialismos mecânicos com uma rapidez extraordinária, e os guardamos por muito tempo. Afinal, a memória muscular de um ser humano, sobretudo a de um ator, é extremamente desenvolvida; enquanto sua memória afetiva, com a lembrança das sensações, das experiências emocionais, é, ao contrário, extremamente frágil.

Ai do ator se houver um fosso entre seu corpo e sua alma, entre sua atividade interior e seus movimentos externos. Ai dele se seu instrumento corpóreo falsifica seus sentimentos, desvia-os da tonalidade certa. É o que ocorre com uma melodia tocada em instrumento desafinado. E quanto mais sincero for o sentimento, mais dolorosa será a discordância.

[...]

A capacidade de manter nosso corpo completamente a serviço dos nossos sentimentos é uma das preocupações primordiais da técnica externa de encarnação de um papel. Há, entretanto, muitos sentimentos incomunicáveis, superconscientes, invisíveis, que nem o equipamento físico mais perfeito pode transmitir. São passados diretamente de alma para alma. As pessoas comungam umas com as outras por meio de correntes interiores invisíveis, radiações de seu espírito, compulsões da sua vontade. Estas têm, no palco, um efeito direto, imediato, poderoso, e transmitem coisas que nem as palavras nem os gestos são capazes de transmitir. A pessoa vive um estado emocional e pode fazer com que outras, com as quais está em comunhão, o vivam também.

Um grande e inveterado erro dos atores é suporem que, na vasta expansão do edifício do teatro, só tem qualidade cênica o que é visível e audível para o público. Mas será que o teatro existe para atender somente aos olhos e ouvidos do público? Será que tudo o que passa pela nossa alma só se presta às palavras, aos sons, aos gestos e aos movimentos?

A irresistibilidade, a contagiosidade e o poder da comunhão direta por meio de radiações invisíveis da vontade e dos sentimentos humanos são grandes. Esse poder é usado para hipnotizar as pessoas, domar animais selvagens ou multidões enfurecidas. Os faquires fazem morrer as pessoas e as ressuscitam. E os atores podem encher grandes auditórios com as radiações invisíveis de suas emoções.

FONTE: A Criação de Um Papel, de Constantin Stanislavski - capítulo III, O período da encarnação física, paginas 127 e 130

Um comentário:

  1. Estava lendo isso no ônibus, retornando à São Paulo, no domingo de anteontem, dia anterior ao do exercício e prosa sobre os olhares. Casualidades coincidentes.

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