segunda-feira, 4 de julho de 2011

Impressões por Roger Valença

Em primeiro lugar, parabéns a você e a toda a companhia pelo seu novo trabalho Produto Perecível Laico. O espetáculo é muito tocante e possui uma leveza muito angustiante no que diz respeito à abordagem do tema escolhido. Gostaria de compartilhar com vocês algumas impressões que tive ao assistir o trabalho.
A princípio fico muito feliz com a bem sucedida apropriação do tema. A meu ver, o que vocês conseguiram fazer foi um primoroso trabalho de “transcriação” (não é simplesmente uma tradução do texto para a dança) do poema de Cruz e Souza. Normalmente, quando espetáculos de dança ou teatro tentam utilizar textos literários e poemas como base para a criação, num quadro geral, o que temos são espetáculos que sucedem em uma sériede artifícios para ilustrar parcamente o que já havia sido escrito. Não é ocaso do trabalho de vocês. A apropriação do tema e configuração numa poética nova transfigura uma atmosfera sublime única e própria do trabalho.
O espetáculo tem um clima paradoxal e por isso mesmo muito interessante. Começa com a sonorização de uma voz agonizante, que está ao mesmo tempo perdendo e tentando recuperar o fôlego. Eu vejo esse fôlego inicial como a figuração do sopro de vida que se esvailentamente, transportando a protagonista para um novo estado. Essa inauguraçãodo espetáculo nas sombras é o “leitmotiv” para toda a encenação.
É uma via de mão dupla: a leveza com que as coisas decorrem pode também significar uma estagnação angustiante(como se fosse um extensão temporal, essa sensação que temos de que o tempo não passa quando nos encontramos em uma ocasião extremamente incômoda) num estado de agonia da personagem que está realizando a passagem para a morte. 
Para mim, o título do espetáculo já introduz que, enquanto símbolo, a morte é o aspecto perecível e destrutivo da existência. De todo modo, está ligada a uma idéia de evolução irreversível das coisas: é a introdução ao mundo desconhecido. Quando as luzes se acendem e nós, os espectadores, aos poucos conseguimos decifrar este mundo desconhecido, podemos perceber a divisão entre a uma figura distinta (a “personagem principal”) e as figuras de preto. Estas figuras, para mim, possuem diversas interpretações: podem seras “sombras” – personificações de aspectos sombrios da personalidade da protagonista -, espíritos, a “morte” ou simplesmente o “nada” filosófico.
Bem, o mistério da morte é tradicionalmente sentido como angustiante (principalmente na cultura ocidental)e figurado com traços assustadores pois revela um medo de absorção pelo “nada”. A meu ver, a manipulação feita pelos bailarinos de preto podem servir como imagem ideal para esta “absorção pelo nada”. Ao mesmo tempo, as sombras, essascoisas fugidias, irreais e mutantes, no sentido psicoanalítico também podemsignificar os males ocultos que deixam de ser revelados pelo subconsciente da pessoa em razão de seus próprios medos. Assim sendo, para renascer após superar os mesmos, é necessário passar por uma morte simbólica, enfrentar seu lado obscuro e assim, poder sobrevir à elas. Neste sentido, visto por outro viés, as sombras podem significar um processo de libertação das forçasnegativas interiores e regressivas, desmaterializando-as e liberando as forças para a ascensão do espírito (ao falar de “espírito” sinto uma incongruência uma vez que a palavra “laico” esteja presente no nome do espetáculo, todavia entendo isso como uma libertação de dogmas, conquistada post-mortem). Resumindo, pode ser exatamente disto que o espetáculo trata, toda a dramaturgia caminha para sintetizar a belíssima imagem que sobrevém ao final: uma Pietá da protagonista que encerra o processo de passagem do espetáculo figurando acima de suas sombras.
Parabéns novamente, o espetáculo é lindo, singelo e muito emocionante.
Roger Valença
'ProdutoPerecívelLaico'
cia borelli de dança (2011)
Foto:Vitor Vieira

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