quinta-feira, 17 de março de 2011

Um gosto mais de decomposição do que de composição

POR CRISTIANO DE SALES ::

A racionalização de Schopenhauer na poesia de Augusto dos Anjos

Havia em Augusto dos Anjos alguma coisa de um moderno pintor alemão expressionista. Um gosto mais de decomposição do que de composição”.
Gilberto Freyre.

Muitas são as possibilidades de leitura quando o que se encontra no centro da discussão é a obra do “mais original dos poetas brasileiros entre Cruz e Sousa e os modernistas” (BOSI, 1994:287). Partindo-se da epigrafe acima selecionada, o presente artigo tem a pretensão de ler Augusto dos Anjos relacionando-o com uma das (talvez a mais definidora quanto ao perfil da obra) influências que permearam a obra do poeta paraibano, aproximando-o, de maneira significativa, ao movimento que surgia em fins do século XIX e início do XX na Alemanha, o Expressionismo.

A impressão deixada por Gilberto Freyre vai ser melhor analisada no ensaio intitulado A costela de prata de Augusto dos Anjos do crítico alemão Anatol Rosenfeld, que tendo como base o New Criticism alemão – é importante ficar claro que não se trata da “escola” norte americana – realizou valiosos estudos críticos acerca da literatura brasileira.

Rosenfeld inicia seu ensaio comparando a linguagem do poeta, fortemente marcada pelos termos científicos, com o que Adorno chamaria de exogamia lingüística, e que, segundo o crítico, é de certa forma análogo ao que se tinha como pensamento acerca do mundo e do homem no expressionismo alemão. Porém a analise proposta em A costela de prata de Augusto dos Anjos aplica-se à poesia e não à pintura, como havia sugerido Gilberto Freyre, e os versos tomados como objeto de estudo são do poeta alemão chamado Gottfried Benn.

No referido ensaio o autor aproveita um trabalho de filologia, onde Walter Jens estuda a linguagem de Benn atribuindo a ela, em particular, uma marca do que seria o início da literatura alemã moderna, e passa a ler os versos do poeta alemão paralelamente aos de Augusto dos Anjos, já que as “coincidências” vão além da linguagem científica, empregada por ambos, passando pela decomposição do ser humano, evidenciada tanto numa quanto noutra obra, chegando, enfim, à simultaneidade em que as mesmas eram produzidas. O termo “coincidências” é propositalmente empregado aqui para que fique claro não estar-se falando ainda em influências, pois é bem provável que Augusto dos Anjos sequer soubesse da existência de Gottfriede Benn e de seu trabalho, bem como de todo o movimento que estava se configurando na Alemanha da época (dada a, já mencionada, contemporaneidade).

Para que se possa falar de influência, e é isso que está pretendido aqui, é preciso pensar em Schopenhauer. Segundo o próprio Rosenfeld num outro ensaio intitulado Influências Estéticas de Schopenhauer, as teorias do filósofo alemão estão de tal maneira entranhadas na cultura ocidental que se fundem com os hábitos de pensar e sentir de europeus e americanos. O principal exemplo disso pode ser encontrado em Freud, que teria sido talvez o principal intermediador entre nós e a “epopéia filosófica da vontade irracional de Schopenhauer”.

E dentre as teorias a que se refere Rosenfeld a mais pertinente à discussão que se propõe aqui é a teoria da racionalização, minuciosamente exposta na obra O Mundo como Vontade e Representação.

Tentando dar conta em poucas palavras, apenas para que se possa prosseguir com este ensaio, do que seria o cerne desta idéia vamos buscar Rosenfeld lendo Schopenhauer:
“... não desejamos uma coisa por termos encontrado razões para desejá-la, mas inventamos, posteriormente, razões, sistemas e teologias para mascarar, diante de nós mesmos, os nossos desejos profundos e os nossos interesses vitais”.
(ROSENFELD,1976: 175)
Com isso estaria o homem condenado a frustração, já que seus desejos não seriam em sua maioria satisfeitos. A esta idéia sim podemos atribuir a semelhança entre Augusto dos Anjos e Gottfried Benn, pois ambos estariam produzindo sob a influência do filósofo alemão, que também pode ser lido como aquele que coloca a dor como essência do mundo (vem daí a temática pessimista), que segundo estudiosos é um considerável ponto de interseção entre Augusto e Schopenhauer. A partir de agora o poeta alemão será deixado de lado para se fazer presente apenas a “concreta” influência filosófica do poeta brasileiro.

Evidentemente não se pode correr o inconseqüente risco de atribuir a esta temática pessimista, onde a regra é a frustração, o único ponto em que as temáticas do filósofo e do poeta convergem, pois o monismo, o conhecimento como fonte de sofrimento, o bom caráter e a felicidade como exceção e não como regra, o amor como algo negativo, dentre outros, são pontos que evidenciam a aproximação entre os dois autores. Porém o objetivo do texto presente é mostrar o quanto o cerne da teoria da racionalização atravessa a obra de Augusto dos Anjos.

Numa tentativa não de legitimar o ensaio, mas de apontar o quanto esta idéia já fez parte dos estudos de vários críticos de nossa literatura, poderia ser listada aqui uma série de transcrições ligando-nos a Ferreira Gullar, bem como a Elbio Spencer, José Escobar Faria, dentre outros. No entanto, vejamos o que nos tem a dizer o pesquisador Henrique Duarte Neto em sua dissertação de mestrado intitulada AS COSMOVISÕES PESSIMISTAS DE SCHOPENHAUER E AUGUSTO DOS ANJOS.
Em Schopenhauer a dor e o sofrimento imperam no mundo porque derivam da vontade, que é, para ele, a essência do mundo, a verdadeira coisa em si.(...) Escravo de seu querer e, por isso mesmo, um ser que não é livre, o homem é a mais miserável de todas as criaturas. Esse querer produzido por uma vontade insaciável está, por conseguinte, muito mais fadado a não ser satisfeito do que satisfeito,(...) Já em Augusto dos Anjos pode-se apontar a dor (ao lado da derrocada, da decomposição da matéria) como sendo a própria essência do mundo. Neste mundo em que os entes são efêmeros e fadados a inúmeros sofrimentos, a dor, por outro lado, é perene (...).
(NETO, 2000: 98)
Nesta dissertação o autor perpassa as principais temáticas que aproximam Augusto dos Anjos de Schopenhauer, culminando na salvação pelo nada, onde a própria proliferação da espécie, ou seja, a manutenção da vida, se constitui em contribuição ao sofrimento.

Portanto, sem o receio de cairmos num reducionismo (já que a empreitada aqui é tomarmos contato com a influência que faz da obra de Augusto dos Anjos algo semelhante ao expressionismo alemão, sugerida pelos críticos) partamos para a verificação de como funciona esta influência nos versos do poeta, tomando como objeto dois poemas (A Floresta e Numa Forja) sugeridos por Rosenfeld e, em parte, trabalhado pelo mestrando, acima citado.

A Floresta
Em vão com o mundo da floresta privas!...
- Todas as hermenêuticas sondagens,
Ante o hieróglifo e o enigma das folhagens,
São absolutamente negativas!
Araucárias, traçando arcos de ogivas,
Bracejamento de álamos selvagens,
Como um convite para estranhas viagens,
Tornam todas as almas pensativas!
Há uma força vencida nesse mundo!
Todo o organismo florestal profundo
É dor viva, trancada num disfarce...
Vivem só, nele, os elementos broncos
- As ambições que se fizeram troncos,
Porque nunca puderam realizar-se!
A começar do título já se pode notar que o soneto sugere um lugar cuja essência está no instinto, já que esta é a força que impera em meio à vida que lá existe. Ou seja, a intervenção racional do homem não é invocada ao que tudo indica. Afinal, conforme traz a primeira estrofe, toda a tentativa de interpretação se revelará negativa diante da complexidade da floresta.

A segunda quadra é um convite à reflexão e ressalta a sedução de um mundo que em muito lembra o olhar, ou a descrição, que Euclides da Cunha volta ao sertão, também na virada do século. Mas é a partir do primeiro terceto que a idéia schopenhauriana começa a ganhar traços bem definidos, pois nele estão contidos dois pilares fundamentais na construção teórica do pessimista filósofo: a dor como essência e o disfarce.

Por fim o poeta encerra seus quatorze versos evidenciando de forma precisa a frustração dos desejos não realizados, que no caso específico solidificam-se em troncos, tornando-se broncos.
Para culminar esta análise notemos que nos versos enxertados a seguir poderemos não apenas reforçar nossa argumentação, mas também verificar uma outra marca do expressionismo alemão, fortemente influenciado pela filosofia da racionalização (conforme já havia sido dito), que é o anseio pelo ‘grito’:

(...)
Era, erguido do pó,
Inopinadamente
Pra que à vida quente
Da sinergia cósmica desperte,
A ansiedade de um mundo
Doente de ser inerte,
Cansado de estar só!
(...)
(trechos de Numa Forja)
Embora o ‘grito’ não esteja explicitamente empregado nos trechos acima é inegável a sensação de que algo necessita explodir, de que algo está clamando para que uma “sinergia cósmica” atue na direção da ruptura com o mundo “inerte” e “cansado”. Essa manifestação (o grito), é um anseio que está presente também na música, por que não dizer expressionista, de um Schoemberg, funcionando por meio das dissonâncias e dos estranhamentos. Porém é nas artes plásticas, conforme insinuava Gilberto Freyre, que esse ‘grito’ parece ter representação mais explicita. Sem pensarmos no movimento expressionista propriamente dito, temos em O grito, de Munch, uma bela representação do que está sendo argumentado, já que há nesta tela a paradoxal fusão de um grito e uma surdez, de um som e sua ausência, de um desejo e sua não realização, enfim, de um gritar pra dentro, abafado. Não obstante, querendo optar pelo depoimento de nosso crítico-historiador, temos Paul Klee, dentre outros artistas plásticos da virada do século, que serviram como precursores do expressionismo alemão.

Portanto, é fato que este grito não ocorre e mais um desejo finda no amargo caminho da insatisfação. E os motivos desse não gritar estão muito bem expressos ainda em Numa Forja:
Repuxavam-me a boca hórridos trismos
E eu sentia, afinal,
Essa angustia alarmante
Própria da alienação raciocinante,
Cheia de ânsias e medos
Com crispações nos dedos
Piores que os paroxismos
Da árvore que a atmosfera ultriz destronca.

A cerração involuntária da boca devido à contração dos músculos, ou seja, os “hórridos trismos” são causados pela “alienação raciocinante”, pois os “medos” e as “crispações nos dedos”, que dela resultam, doem mais do que a mais intensa dor causada por um desejo de vingança, por uma atmosfera ultriz.

Bibliografia:
ANJOS, Augusto dos. Obra Completa: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. (Biblioteca Luso-brasileira. série brasileira).
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo, SP: 40. ed. Cultrix, 1994
DUARTE NETO, Henrique. As cosmovisões pessimistas de Schopenhauer e Augusto dos Anjos. Florianópolis, 2000. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Programa de Pós- Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000.
DURANT, Will. A História da Filosofia. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1996 (Coleção Os Pensadores).
KLEE, Paul. Diários. 1. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1990 (Coleção a).
ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto. 3. Ed. São Paulo: Perspectiva, 1976 (Coleção Debates).

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