sábado, 11 de dezembro de 2010

O Corpo: Vida e Morte

No conjunto das modificações que o homem sofre no decorrer de sua existência, há duas mudanças que se destacam e predominam sobre as outras: o nascimento e a morte. Rechaçada como tabu da vida cotidiana, a morte está, não obstante, presente, em todos os momentos, nas mitologias, no ritual, no inconsciente.
Os nossos jornais relatam e dissecam dezenas de mortes diariamente. A morte exerce fascínio e é ambicionada mercadoria jornalística. O espectador dos meios de comunicação de massa, como diz, Kientz (37, p.140), "é um espectador insaciável dos casos de morte". O jornal e o cinema fazem reverberar o tabu de morte, vendendo para cada um de nós um sentimento que está reprimido na profundidade de cada alma.
De fato, esta exaltação de morte nos diários contrasta com a sua silenciosa dissimulação na vida cotidiana, em que ela é banida das conversas, obscurecida por metáforas e escondida das crianças que podem ver os cadáveres empilhados nas telas de cinema e televisão, mas a quem é furtado o conhecimento da realidade da morte em seus círculos familiares, e de quem se afastam os velhos, porque esses seres enrugados, curvados, decrépitos, são capazes de transmitir a idéia de decadência e morte. Quantos jovens viram ou se aproximaram de um cadáver?
Ninguém permanece perto de um cadáver, sem que sua fisionomia ateste que é precisamente um cadáver o que está vendo. Se a pessoa não está habituada, apresenta certas reações típicas,  ousa olhar rapidamente para o cadáver e afasta os olhos imediatamente de maneira a não deixar dúvida de que quer separar sua visão de algo que não quer ver; há quem cubra os olhos e quem desmaie.
O certo é que o morto, como as coisas insólitas, anormais ou ambíguas, constitui um ser impuro, cujo contato representa perigo para o mundo das normas. Em muitas sociedades, ameaça manchar a todos e a tudo que tem ou teve contato com ele – incluindo os seus pertences – já que tudo que se relaciona com ele participa de sua perigosa personalidade: se ele é tabu, são também tabus suas propriedades, sua casa, seus parentes, seus amigos. Estes, segundo os casos e em grau variáveis, se tratam com cuidados especiais, se evitam, se destroem ou se purificam.
À morte reconhecemos uma eficácia ritual. A morte tem mana. Basta olharmos em volta dos muros dos cemitérios e veremos a quantidade de ritos mágicos de que ela é objeto. Entre certos pigmeus, a iniciação dos magos exige provas para o ingresso na sociedade secreta dedicada à magia negra, muitas delas ligadas ao contato com a morte e com a impureza: em uma delas se coloca atado, peito contra a boca, o candidato, a um cadáver, levando-os, ambos, para o fundo de um fosso, que se cobre de ramagens, onde permanecem três dias;outros três dias, o neófito passa em sua cabana, atado ao morto que se putrefaz e de cuja mão ele deve servir para a alimentação, esta mesma mão que, depois, posta para secar, servirá a ele como seu mais poderoso fetiche (12,p.165-6).
Vann Gennep (32) e Hertz (35) mostraram que a morte, a consciência coletiva representa um afastamento do indivíduo da convivência humana; esta exclusão, entretanto, tem um caráter temporário e tem por efeito fazer com que o morto passe da sociedade palpável dos vivos para a sociedade invisível dos ancestrais. Como fenômeno social, a morte consiste na realização do penoso trabalho de desagregar o morto de um domínio e introduzi-lo a outro.
Nessa passagem de um mundo a outro, do conhecimento ao desconhecido, do seguro ao misterioso, o indivíduo recebe um acondicionamento que se concretiza em ritos que o preparam para a nova vida: muda de nome, as roupas, ou o gênero de vida. Este estágio intermediário, intersticial entre um mundo e o outro, coloca em jogo forças perigosas. Entre a desintegração do indivíduo excluído de um mundo e a sua integração à sociedade dos mortos, pratica-se uma série de procedimentos rituais que visão completar o processo de proteger a comunidade. Ninguém está livre do perigo antes que o processo funerário esteja completado em todas as suas etapas, e antes que todas as coisas estejam em seus devidos lugares.
Nesta fase intermediária, o grupo está sujeito à ações das forças nefastas que a morte irradia - forças nocivas que ameaçam o homem. Deve, então, se prevenir e se munir dos recursos simbólicos capazes de alterar essas forças e de neutralizá-las. É necessário exorcizar o cadáver, a morte, e tudo o que diga respeito a eles. Neste ponto está a inspiração das práticas funerárias e seu valor expressivo.
Valor expressivo, porque, por tudo o que se disse, o corpo humano morto não pode ser considerado como um cadáver qualquer: é necessário dar-lhe a sepultura. Não por simples gesto instrumental de motivação higiênica, mas por obrigação moral e por necessidade de exprimir alguma coisa.
Não se poderia explicar, por exemplo, o enterro, por motivos puramente utilitários (afastar a sociedade de uma possível fonte de elementos patogênicos), porque, se isso fosse verdade, não se entenderia o porquê de algumas sociedades enterrarem os seus membros antes mesmo de estes falecerem.
O enterro, e as outras formas de lidar com o corpo morto, é um meio de a comunidade assegurar a seus membros que o indivíduo caminha na direção da ocupação do seu lugar determinado, devidamente sob controle. Estas práticas comunicam ao grupo uma mensagem que evolui da, insegurança ao sentimento de ordem, e representa a maneira especial que cada grupo tem de resolver o mesmo problema fundamental: o drama da finitude humana.

RODRIGUES, José Carlos. Tabu do Corpo. Rio de Janeiro, Edições Achiamé,1983. (p.49-56)



3 comentários:

  1. Compelidos pela pressão da suposta lógica que nos exige a moral, repassamos o sentido de coisas como a morte, com rituais que cada vez mais o enrigesse, reprimindo um olhar mais demorado em sua significância. Talvez as coisas não tenham o significado que imaginamos, ou talvez significado algum, o fato é que, a mim, as coisas pedem apenas para não temê-las, à partir de então, confortavelmente, eu as observo e, como ser pensante, as resignifico.

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