domingo, 12 de dezembro de 2010

Panorama da época


No Brasil, a história de um preconceito
João da Cruz e Sousa viveu a sua primeira infância num solar provinciano e patriarcal do Segundo Império. O Brasil vivia um dos momentos mais importantes de sua história: a Guerra do Paraguai ( 1865 a 1870). Cruz tinha apenas quatro anos de idade quando seu protetor, marechal Guilherme Xavier de Sousa, foi para a guerra, antes libertando todos os escravos que possuía, incluindo, entre eles “mestre” Guilherme, pedreiro de profissão, pai do poeta. Neste sentido, pode-se dizer que o poeta foi privilegiado com relação aos demais escravos do país, que foram mantidos sob o jugo escravocrata ainda por muito tempo.
Em 1850, com a proibição do tráfico de escravos, criou-se condição para o início de uma possível campanha abolicionista no país. Mas, dessa data até a abolição, foram 38 anos de conflitos sócio-políticos e econômicos acontecendo paulatinamente. Portanto, de maneira mais efetiva, foi a partir de 1865 que alguns caminhos foram abertos para a evolução não só do movimento abolicionista, mas também republicano, no Brasil.
Durante a Guerra do Paraguai, os militares brasileiros entravam em contato com o regime republicano de outros países da América Latina. Por outro lado, o fato de muitos escravos terem participado como soldados gerou certa valorização do homem negro enquanto ser capaz de incorporar um sentimento patriótico perante a nação.
O escravo era considerado inferior, incapaz de uma evolução racional. Neste sentido, Cruz e Sousa, negro puro, foi durante seu desenvolvimento intelectual, em Desterro um verdadeiro incômodo que contrariava toda a opinião pública dos homens brancos. Andrade Muricy, comentando os tormentos sofridos pelo poeta, nos diz: “A trajetória escolar, em compensação, trouxe-lhe sempre renovados triunfos, porém, assinalados com o estigma da raça. Existe, dessa época, um atestado glorioso, passado em seu favor pelo sábio de renome universal Fritz Müller, amigo e correspondente de Darwin e Haeckel, com quem estudou dois ou três anos. Cruz e Souza ia fazer quinze anos quando o naturalista alemão escreveu a seu irmão:
“Esse preto representa para mim mais um reforço de minha velha opinião contrária ao ponto de vista dominante que vê no negro um ramo por toda parte (talvez sob todos os aspectos) inferior e incapaz de desenvolvimento racional por suas próprias forças”.
Negros Libertos?
Logicamente, todo intento pelo movimento abolicionista, perpassado por uma ideologia humanitária, não recaía nos reais problemas que diziam respeito ao homem negro, mas sim se pautava pela própria ótica ideológica do branco. Assim sendo, atingido o que se considerava o intento verdadeiro, a proclamação da República, a abolição dos escravos é dada como causa superada. Não existirá, a partir de 1988, nenhuma preocupação por parte dos dirigentes da nação em se promover uma política social capaz de favorecer a integração desse homem livre ao contexto social da época. A liberdade do negro não é respaldada por nenhuma política econômica. Seria uma liberdade para ociosidade e não para o fortalecimento social do país. Os suicídios de negros e mulatos, que começaram a ocorrer depois de 1850, aumentaram muito depois de 1888. Era uma resposta pessoal que se dava a tal postura branca. Um pouco antes da abolição eram muitos os levantes de escravos que já sofriam as mais variadas formas de pressões. São trágicas as condições de trabalho do negro. É a partir daí que se instaura o profundo preconceito de cor no Brasil. Dentre alguns autores, Lima Barreto expressa muito bem este problema na sua obra.
Quanto a Cruz e Sousa, sabe-se o quanto foi difícil manter-se no Rio de Janeiro, principalmente depois que constituiu família. Conseguiu no máximo a função de arquivista, recebendo quantia irrisória para o seu sustento. Em termos sociais, um pequeno fragmento de Andrade Muricy já nos ilustra muito bem: “ Fato é que, ao vir para o Rio de Janeiro, logo após a abolição dos escravos, ainda os seus companheiros, para evitar-lhe vexames, anunciavam em voz alta,de modo afetado, o seu nome, ao com ele entrarem nos cafés e confeitarias, segundo me narrou Emiliano Perneta: “ Entra, ó Cruz e Sousa! Entra, ó grande poeta!...”Lembrava o autor do jornal libertário Hércules: “Cruz e Sousa fitava-nos com olhares tristes, como quem pensasse: Que grandes canalhas!”
Toda essa força agressiva do cotidiano de sua vida foi flagrada e expressada no sublimar de sua obra. Vale aqui considerar os dizeres de Antonio Candido no tratamento da relação entre o artista e a sociedade em que vive: “Os elementos individuais adquirem significado social na medida em que as pessoas correspondem por sua vez que os indivíduos possam exprimir-se encontrando repercussão no grupo. As relações entre o artista e o grupo se pautam por esta circunstância e podem ser esquematizadas do seguinte modo: em primeiro lugar, há necessidade de um agente individual que tome a tarefa de criar ao apresentar a obra; em segundo lugar, ele é ou não reconhecido como criador ou intérprete pela sociedade, e o destino da obra está ligado a esta circunstância; em terceiro lugar, ele utiliza a obra, assim marcada pela sociedade, como veículo das suas aspirações individuais mais profundas” (Literatura e Sociedade, p.25). A conexão da palavra poética de Cruz e Sousa e seu tempo é de canto doloroso dentro da nebulosidade simbolista. Seu tempo foi de repúdio, que o sussurro de seu canto tão bem soube revelar.
GONÇALVES, José Aguinaldo. Literatura Comentada.São Paulo: Nova Cultural, 1988. (p.11-22)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.